Por: Joanara Hanny Messias Gomes – Defensora Pública, integrante da comissão da Igualdade Étnico-Racial da ANADEP

1 – O que é a intolerância religiosa?

A intolerância religiosa é um ato de discriminação, não aceitação, de ofensas e afrontas à determinada crença, religião, liturgia ou culto, não importando se a religião é a oficial de determinado local ou país, não importando a época em que ela surgiu. Pode ser praticada por qualquer pessoa, independentemente de o agressor ter uma religião, basta a demonstração de desrespeito aos praticantes de determinada crença ou religião, ou ataque aos seus dogmas e preceitos.

Esse desrespeito pode se manifestar por meio de agressões verbais e físicas; as agressões verbais podem ocorrer com a realização de piadas, maldizeres, injúrias e insultos aos praticantes e adeptos da religião. Ocorre também com a profanação de símbolos e imagens religiosas; com a destruição de templos e locais de culto e a perseguição religiosa, que pode ser extremada em xenofobia e genocídio como nos mostra a história.

2 – Qual a importância de se ter uma data para o combate a Intolerância Religiosa?

No Brasil, a Lei n. 11.635 de 27 de dezembro de 2007 criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a ser comemorado anualmente em todo o território nacional no dia 21 de janeiro.

Esta data também serve para homenagear a ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda de Ogum, fundadora do Axé Abassá de Ogum, na cidade de Itapuã, Estado da Bahia, pois remete a data de sua morte ocorrida em 21 de janeiro de 2000. Dias após o seu terreiro ter sido atacado e destruído como forma de rechaçar sua crença, Mãe Gilda de Ogum faleceu.

A importância desta data é dimensionada através da história. No Brasil, a intolerância religiosa começou logo com a chegada dos portugueses, pois houve a imposição da religião católica, então praticada pelos portugueses, aos povos indígenas e africanos escravizados, realizando com eles a “catequização” em massas pelos padres da Igreja Católica.

Nesse processo, as religiões e crenças de matriz africana e indígena foram praticamente dizimadas. O negro escravizado não teve alternativa a não ser misturar sua crença com a crença que era permitida e o que não era aceito foi perdido no tempo, a intolerância religiosa à época voltou-se a uma anulação da crença associada aos povos originários da África. O resquício dessa intolerância é refletido hoje, pois a maior discriminação religiosa está contra os adeptos das religiões de matriz africana, umbanda e candomblé.

A Igreja Católica também já foi perseguida, vítima da intolerância religiosa, como por exemplo quando da destruição de seus símbolos e imagens em rede nacional. E isto se torna um ciclo vicioso de intolerância, aquele que não tolera também vai sofrer discriminação e é nesse ponto a importância da data, pois é preciso entender que a crença religiosa é algo pessoal, que a sua crença não pode ser imposta como uma unidade verdadeira. Que todos temos liberdade de pensamento e de escolha.

Nesta data é preciso refletir acerca do respeito à diversidade das religiões e crenças. Refletir que é livre a manifestação do pensamento e inviolável a liberdade de consciência e de crença, conforme normatiza a Constituição desta República, mas isto não significa que é permitido ofender, atacar e difamar. Ter opiniões contrárias é intrínseco ao ser humano e emitir o seu dissenso e suas críticas é um direito, mas este direito termina quando essas manifestações se tornam ofensivas e agressivas.

3 – A intolerância religiosa é crime?

A discriminação religiosa é crime previsto na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, a qual estabelece que serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

De acordo com a referida Lei, são considerados crimes de discriminação ou preconceito contra religiões as práticas, por exemplo, de “Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos”( art. 3º); “Negar ou obstar emprego em empresa privada” ( art. 4º); “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” ( art. 5º); “Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau” ( art. 6º); “Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar” ( art. 7º), dentre outras…

Em sua grande maioria, os casos de intolerância religiosa podem estar conectados aos casos de racismo, assim os agressores serão punidos na forma da Lei nº 7.716/89. Contudo, pode ocorrer o crime de injúria religiosa, prevista no parágrafo 3.º, do art. 140 do Código Penal, o qual prevê pena de reclusão de um a três anos e multa se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

4 – A Defensoria Pública pode atuar em casos que envolvam a prática de discriminação ou preconceito contra religiões?

Os casos de intolerância religiosa podem ser denunciados em qualquer delegacia de polícia e também no Disque Direitos Humanos, o “Disque 100”, número de telefone do Governo Federal que funciona 24 horas por dia para receber denúncias contra quaisquer violações de direitos humanos, inclusive os casos de intolerância religiosa. Por exemplo, no ano de 2018 foram registrados 506 casos e em 2019 foram 411 registros, conforme fonte do sítio oficial do IBGE[1].

A Defensoria Pública pode atuar no caso de uma pessoa ser vítima de intolerância religiosa, ou de crimes racismo ou de injuria religiosa, esta atuação se dá na esfera cível e criminal. Também pode atuar na luta e conscientização acerca dos direitos relacionados ao exercício das religiões, cultos e liturgias. É possível, inclusive, o ajuizamento de ações coletivas ou individuais para a indenização por danos morais ou materiais que eventualmente possam ocorrer por uma conduta de intolerância religiosa, bem como da cessação do ato.

5 – No seu ponto de vista qual seria a principal causa da intolerância religiosa? Como podemos romper essa barreira do preconceito e da discriminação?

O Brasil é um país laico nos termos da Constituição Federal de 1988, significando que não há um religião oficial do Estado e que todas as religiões devem ter tratamento igualitário. O art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal assegura liberdade de crença aos cidadãos, estabelecendo que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”.

Ainda, garantido a liberdade da prática religiosa em suas diversas formas, têm-se as disposições do art. 5º, da Constituição Federal no inciso IV, o qual estabelece que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, no inciso VI “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”, no VIII “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”, e também no inciso IX “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Outrossim, o Brasil adota as normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos a qual no art. XVIII, expressa que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião” o que reforça a laicidade do Estado brasileiro.

Todas essas normas estão expressa e compõem o Estado Democrático; assim, pregar a intolerância religiosa é um ato de desrespeito e ignorância em dois sentidos desta palavra; ignorância de falta de conhecimento, falta de informação do que é viver uma sociedade democrática com pluralidade de religiões. E, ignorância no sentido da grosseria e da brutalidade, do ato de violência insensata e injustificada contra os praticantes de determinada religião, seja ela física ou verbal.

6 – Qual o papel das instituições e órgãos para com esta data. Será que só o conhecimento é suficiente para acabar com a discriminação?

A intolerância religiosa não é uma exclusividade do Brasil, está marcada na história da humanidade desde a instituição da civilização e ainda é uma realidade que aflige diversas comunidades em todo o mundo.

Várias foram travadas com motivos religiosos, vários povos foram perseguidos e mortos por sua opção religiosa, mas “nenhuma guerra pode ser santa” (Renato Russo). Como exemplos, podemos citar a perseguição dos intitulados hereges durante a inquisição da Igreja Católica; a perseguição aos povos Hebraicos durante várias épocas da história, que culminou na morte de milhares de judeus no holocausto do século XIX pela Alemanha Nazista comandada por Adolf Hitler. A perseguição aos povos de religião Islâmica, motivo dos conflitos no Oriente Médio causados por grupos extremistas, os quais também estão presentes em outros continentes, como na África que sofre com os conflitos religiosos na Nigéria e Sudão.

Esta discriminação teve consequências devastadoras e afeta toda a sociedade. No Brasil, esse problema está relacionado majoritariamente ao racismo, assim, o papel de todas as instituições, dos órgãos públicos e da sociedade como um todo, é no combate ao racismo na sua forma de intolerância religiosa.

Neste aspecto, o conhecimento sozinho não é suficiente para acabar com a discriminação, é preciso conhecimento, respeito e aceitação, pois somos todos livres em nossos atos e opiniões, o que nos permite o exercício de qualquer religião, seja ela monoteísta, politeísta ou ateísta. Afinal, a religião precisa ter como propósito a solidariedade, a fraternidade, o respeito ao próximo, por mais que sejam diferentes em pensamentos, opiniões e estilo de vida. E, principalmente, propósito na paz interior para a conectividade com seus princípios, crenças e/ou rituais, divindades, forças superiores, sobrenaturais, etc.

Assim, a intolerância religiosa é uma contradição dentro da própria religião, pois não se pode pregar o ódio, a violência e o desrespeito a um semelhante, a um ser humano que teve o mesmo Criador, não importando a crença de que esta origem foi num Deus, em Orixalá, no titã Prometeu, na evolução das espécies (Evolucionismo), até porque a criação do homem implica na resposta mais complexa da humanidade e leva à discussão religiosa, científica e filosófica. O que se sabe, é que somos a única espécie dotada de inteligência e racionalidade e por isso não podemos odiar aquilo que não conhecemos se isto não afeta a nossa existência, todos devem aprender a conviver com as diferenças.

 

[1]

https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/Dados_de_Violacoes___2018_e_2019.xlsx, consulta em 15/01/2021 às 14h05min.

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