Segundo dados apurados no primeiro semestre de 2022, quatro mulheres morrem todos os dias por violência doméstica no Brasil. Um dado assustador e que remete ao filme “Dormindo com o Inimigo” de 1991, estrelado por Julia Roberts e Patrick Bergin, cuja trama se desenvolve a partir de um casamento marcado pela violência do marido.

O Atlas da Violência de 2021, divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), registra que em 2019 foram notificados 1.246 homicídios de mulheres nas residências, o que representa 33,3% do total de mortes violentas de mulheres registradas. Esse índice aproxima-se do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020”, segundo o qual 35,5% das mulheres que sofreram homicídios dolosos em 2019 foram vítimas de feminicídios.

O crime de feminicídio foi incorporado ao Código Penal pela Lei 13.104/2015 como um tipo específico de homicídio doloso cuja motivação está relacionada aos contextos de violência doméstica ou ao desprezo pelo sexo feminino.

Dados da Organização das Nações Unidas, por meio da ONU Mulheres (www.onumulheres.org.br), apontam que o custo anual da violência contra a mulher é equivalente a 2% do PIB mundial. No mundo, o Brasil ocupa o desonroso 5º lugar dos países com maior índice de violência doméstica. Para se ter uma ideia da gravidade dessa “pandemia”, entre janeiro e julho de 2022 foram 31 mil denúncias de violência doméstica, de todas as formas, segundo dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.

A desigualdade de gênero está na base da violência doméstica, construída a partir de uma relação de assimetria de liberdade sexual, papéis sociais e posições de poder do gênero feminino em relação ao masculino. As causas são históricas e culturais, e formaram uma estrutura social que por muito tempo limitou o papel da mulher ao ambiente doméstico e, mais grave, colocou-a simbolicamente como parte do domínio do homem.

É célebre o livro da escritora inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797), publicado em 1792 sob o título de “Uma reivindicação dos direitos da mulher” (“A vindication of the rights of woman”). Sua defesa era de que os ideais da Declaração dos Direitos do Homem de 1789 só se realizariam se os direitos se aplicassem também às mulheres. Ela faz uma crítica veemente ao sistema de educação, que reforçava a ideia de inferioridade feminina e relegava às mulheres o papel de mero objeto.

No Brasil, a primeira escritora a ganhar notoriedade em defesa das mulheres foi Nísia Floresta, que em 1832 publica o livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”. A autora publica diversas obras voltadas especialmente para a questão da educação das mulheres, como o “Opúsculo humanitário”, de 1853, na qual indaga logo no início: “Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado — emancipação da mulher —, nossa débil voz se levanta, na capital do império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres! Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse liberalismo?”

Em que pese o levante das vozes femininas, infelizmente a cultura da desigualdade de gênero que alicerça o pensamento machista se mostrava resistente em quase todo o Mundo, e no Brasil também.

Foi preciso exatos 100 anos da publicação de Nísia Floresta para que as mulheres passassem a ter o direito de voto no Brasil, em 1932, garantido pelo primeiro Código Eleitoral brasileiro, já sob a égide da Constituição Republicana de 1891.

Não parece que isso possa ser compreensível nos tempos de hoje, mas foi preciso que uma lei de 1962 viesse a garantir à mulher o direito de trabalhar sem necessitar da autorização do marido. A Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, conhecido como o “Estatuto da Mulher Casada”, ilustra como a cultura do machismo foi alicerçada pelas instituições políticas. Tido como um “marco” para o direito das mulheres, ela alterou o Código Civil de 1916 para permitir o trabalho sem autorização do marido. Mas é evidente como a Lei ainda trazia muitos elementos de submissão feminina.

Na verdade, o Estatuto da Mulher Casada praticamente criou o que podemos chamar de “figura jurídica” da “dona de casa”. Ela ditava, por exemplo, que “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”, numa inequívoca demonstração de assimetria de poder. Também dispunha que marido era o “representante legal” da família, como se a mulher não fosse igualmente capaz. Por fim, dizia que “a mulher assume, com o casamento, os apelidos do marido e a condição de sua companheira, consorte e colaboradora dos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta”.

Passado pouco mais de seis décadas do Estatuto da Mulher Casada, muitos “maridos” pelo país à fora continuam se entorpecendo deste maldito caldo cultural, alguns às claras, outros às espreitas, alguns nos bares, outros nas igrejas. Tomados por uma sensação de superioridade física e moral, esses homens agem como se a mulher fosse uma propriedade. Assim como o carro serve para conduzi-lo por onde queira, a função da mulher é de manter a casa organizada, lavar e passar a roupa, servir a comida quente à mesa, e por aí vai.

Inevitavelmente, porém, há um momento em que essa coisa toma uma dimensão maior, mais grave e muito preocupante. É quando a violência ingressa na relação. Segundo comentam os especialistas, os primeiros sinais de que uma mulher está vivenciando um ciclo de violências é quando o homem procura afastá-la de sua rede de proteção, como familiares e amigos. Os estudos mostram que, embora se sintam ameaçadas, as mulheres acabam não denunciando enquanto a violência é psicológica, ou seja, até que a primeira agressão física aconteça.

A Lei 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, trouxe mecanismos de proteção à mulher contra a violência doméstica, que dividiu em cinco tipos: violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, violência física e violência sexual.

Na segunda parte deste artigo vamos explicar em detalhes os tipos de violência trazidos pela Lei Maria da Penha. Por enquanto, o interesse é priorizar a estrutura de assistência à vítima de violência doméstica.

A Casa da Mulher Brasileira é talvez a mais importante estrutura de assistência e proteção à vítima de violência doméstica. Trata-se de um espaço onde são integrados os serviços de acolhimento, apoio psicossocial, delegacia, Juizado, Ministério Público e Defensoria Pública.

Por fim, o Disque 180 também é um serviço importante, tratando-se de um canal exclusivo de denúncia de violências domésticas.

Fiquemos todos atentos! Se você ou alguma mulher que conheça está sendo vítima de violência doméstica, de qualquer tipo, procure ajuda ou denuncie. Dirija-se à Casa da Mulher Brasileira, onde encontrará suporte especializado para a mulher e para as crianças.

*Davi Nogueira Lopes

Mestre em Direito pela UFMS (área de concentração Direitos Humanos)

Advogado da ADEP/MS.