Neyla Ferreira Mendes*
O dia 24 de março marca o Dia Internacional para o Direito à Verdade sobre Graves Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas. Em época em que as narrativas fazem a verdade virar versão, e a versão virar verdade, essa data deve levar-nos à reflexão sobre o fato da memória ser um campo de disputas políticas, pois o “lembrar” ou o “esquecer” estão sujeitos a regras estabelecidas por forças poderosas, em regras invisíveis, posto constituídos de forma sub-reptícia, quando não, de formas coercitivas.
Data ainda pouco conhecida, foi estabelecida pela Assembleia Geral da ONU em 21 de dezembro de 2010 e incluída no calendário brasileiro em 2018, por meio da Lei nº 13.605/18, para uma “reflexão coletiva a respeito da importância do conhecimento circunstanciado das situações em que tiverem ocorrido graves violações aos direitos humanos, seja para a reafirmação da dignidade humana.”
No Brasil, temos casos emblemáticos, cuja verdade não foi revelada e as vítimas não foram reparadas, a exemplo recente, do assassinato da ativista feminista e de igualdade racial, a vereadora do Rio de Janeiro, Mariele Franco e seu motorista, ou mais antigo, o Navio-Prisão, quando em 1964 em Corumbá/MT (hoje MS), centenas de opositores do regime militar foram sequestrados por agentes do Estado, alguns foram presos, outros desapareceram. Muitos enlouqueceram devido à tortura sofrida no Navio-Prisão; tais prisões sem registro ou processo e direito à defesa, os sobreviventes e familiares, até hoje, tentam saber o que ocorreu, ou ainda, as violações impostas às populações indígenas do Sul e da região do Pantanal, do Povoado de São Carlos (Caracol), entre tantos outros.
Parte das violações sofridas pelos indígenas, no Brasil e no então Mato Grosso, estão descritas no Relatório Figueiredo, provando que foram vítimas de torturas, escravidão, execuções por meios cruéis como crucificação, envenenamento, esquartejamento, isso tudo para expropriar bens móveis, imóveis e semoventes.
Enfim, são vítimas das graves violações dos direitos humanos as pessoas vítimas de desaparecimento forçado, sumariamente executadas, torturadas, além de seus parentes e entes queridos. Todos e todas têm o direito de saber a verdade sobre as violações que as afetam e a efetiva reparação de danos lhes impostos.
Em 2006, um estudo do Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos concluiu que o direito à verdade sobre graves violações dos direitos humanos e graves violações da lei dos direitos humanos é um direito inalienável e autônomo. Segundo a pesquisa, o Estado tem o dever e obrigação de proteger e garantir os direitos humanos, conduzir investigações eficazes e garantir recursos e reparações eficazes. Em outro relatório, de 2009, o mesmo Escritório identificou as melhores práticas para a implementação deste direito, incluindo práticas sobre arquivos e programas de proteção de testemunhas.
No Brasil, a política de proteção à testemunha é implementada por dois programas, o PROVITA, criado em 1999, por meio da Lei Federal nº 9.807/99, visa a proteção de vítimas e testemunhas ameaçadas e atende à demanda de toda a federação, seja por meio dos Programas Estaduais ou do Programa Federal, e ainda, do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que atua no atendimento e acompanhamento dos casos de risco e de ameaça de morte de defensores de direitos humanos, comunicadores e ambientalistas em todo território nacional, conforme previsto no Decreto nº 9.937/2019 e no Decreto nº 6.044/2007.
No Estado de Mato Grosso do Sul quase todas as vítimas inseridas no PPDDH são lideranças indígenas, porém, são vinculadas aos programas de proteção via governo federal, vez que o PROVITA se encontra desativado em Mato Grosso do Sul há mais de dez anos e o PPDDH, embora há muito solicitado pelos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Estado, nunca foi implementado em Mato Grosso do Sul.
A prestação de contas públicas sobre as violações graves aos direitos humanos, explicitando todas as circunstâncias, além de direito das vítimas e seus familiares, é um compromisso ético da sociedade com a verdade, e instrumento de efetividade da dignidade humana, prevenindo que tais violações não mais ocorram.
*Defensora Pública de Segunda Instância. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Ex-Coordenadora Estadual do Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e Igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul – NUPIIR-MS –OAB-MS 3740.